Bibliografia

​Carta do Futuro

Carlos Gentil-Homem, Humor, ed. de autor (25 ex.)
1968

Republicado em Ernesto de Sousa: Itinerários [catálogo], Lisboa, SEC e Galeria Nacional Almada Negreiros, 1987, e em opúsculo homónimo publicado pel'O Homem do Saco, 2016.



Meu caro Carlos…

…era o tempo da coluna de Trajano, o de Gutemberg e da linguística post-saussuriana – modelo e remédio para todas as doenças da comunicação. Era um tempo confuso, meu caro Carlos, e de limites imprecisos, o tempo das prisões e da tipografia. E de alguma coisa mais, adiante o veremos. Toda a memória do mundo estava encerrada em outras tantas prisões, sinistros armazéns de silêncio, a que davam o nome de bibliotecas. Uma, célebre, foi queimada em Alexandria, mas outras, muitas outras se tornaram indispensáveis durante um largo período. De tal modo que alguns dos nossos técnicos de antropologia historialista sugerem que se designe esta obscura idade por era das bibliotecas. A memória tinha sido analisada até à miudeza atomística dos caracteres tipográficos, esquecidos já os belos pictogramas da primeira idade; e entretanto confundiam-se em absurdo e ambiguidade, grandes sonhos antigos de plenitude e unanismo. Hoje começa a compreender-se que foi um tempo necessário, mas não podemos deixar de lamentar os homens de então, mistificados e amarrados às servidões de uma memória mecânica.

…foi por essa altura       pouco antes do ano 2000      que surgiram, ou ressurgiram, os comics, os fumetti, enfim a literatura de expressão gráfica:  coisa de somenos, comparada com o advento da electrónica, as memórias magnéticas e as primeiras evidências e profecias da volta necessária ao predomínio da oralidade

Mas essa coisa de somenos    acção expressa em sinais

                                                 gráficos de leitura instantânea e

apelo

                                                 à
                                                 COMUNICAÇAO ORAL

foi logo aproveitada pelos vendilhões do templo, e posta ao serviço da mass comunication, que era ainda, predominantemente, uma operação de nivelamento colectivo, um sistema complicado de garantir a ordem – pax romana ou atlântica qualquer… contra a desordem libertadora.

Mais significativo porém, foi o diálogo     a polémica        a luta          o agatanhamento!… entre Poetas e Bem-pensantes.  Porque – em boa verdade to digo – nesse tempo, mergulhadas embora no mar comum e necessário do palrar tecnológico e do entendimento, os construtores, só havia duas palavras significativas e significantes

a dos Poetas                       difíceis de definir e objecto frequente de

                                            mistificações várias

a dos Bem-pensantes         fáceis de definir


…bem entendido, eram estes últimos esquerdos, ou direitos, que predominam em número. Falavam seriamente, e cofiando as barbas que não tinham (seria demasiada excentricidade) defendiam os LIVROS. Tinham recebido instrução para isso nas Escolas Oficiais aí se codificavam essas ou outras coisas, e havia mesmo dísticos lapidares e reconfortantes


                                        “O Trabalho dá alegria”
                                        “A Propriedade é sagrada”
                                        “O Cão é o Melhor Companheiro do Homem”

                                        “O Livro é a Melhor Amigo do Homem”
                                        “Dá o Teu Sangue”
                                        ………………………………………………………..

…a este Código bem articulado chamavam Cultura, Moral, etc. Era um estranho espectáculo: tanta gente respeitável defendendo a precaridade e o pó das Bibliotecas, num tempo…
…um tempo onde já a técnica mostrava o caminho da grande revolução da memória voluntária e instantânea, da velocidade super sónica das comunicações, dos ordenadores electrónicos e dos laser!
(Mas os Bem-pensantes, confessadamente ou não, eram todos tradicionalistas embora esquecidos da grande tradição tribal           todos lamentavam no fundo         o bacalhau com batatas, a velha broa de milho cozida em fornos calafetados com bosta de boi e as delícias do trabalho manual. Em alguns dos grupos demográficos chamados países, os próprios escritores continuavam a escrever    À MÃO!       em bela letra cursiva…).

…é necessário lembrar que os homens eram efémeros. Viviam no máximo 100 anos    menos do que um homem hoje necessita para sair da adolescência… Podes imaginá–lo? Pensavam a correr entre a satisfação – se se pode dizer – de duas “necessidades” lavavam-se provocando abundantes saponificações de matérias supérfluas e excrescências que o seu pobre equilíbrio orgânico incessantemente excretava     sangue    suor     lágrimas    etc.  Por isso também, outros dos nossos técnicos de antropologia historialista propõem para a fase final deste período a designação de era do sabonete e da Água de Colónia  –

esta designação, porém, tem sido eficientemente refutada, alegando os seus detractores que o uso daquelas matérias não era universal nem cobre todo o período.

…a LEITURA era um critério de qualidade (embora tenha tido os seus detractores “tanto leu que tresleu” diziam estes anónimos e saudáveis inconformistas) as próprias artes passaram por ser “lidas: dizia-se, a leitura de um edifício leitura de um quadro. Acabou por se ignorar que a obra de arte é o sensível na sua glória, ao mesmo tempo que ímpeto sempre renovado e renovável de acção.
…nestas condições, não é para admirar que aos Bem-pensantes, os fumetti surgissem como uma espécie de ameaça, atentos apenas aos seus aspectos menos relevantes. Isso já acontecera com o cinema, aos anos da primeira divulgação considerado como depreciável espectáculo de feira pelos Bem-Pensantes da hora. Acontecia também com a TV…
…é que toda a alienação comporta uma defesa estrema de sua própria a insinceridade e o respectivo combate vem sempre de fora, de algo situado no horizonte do possível, invenção a fazer, forma não codificada.  O sabonete e a moral equilibravam-se com a miséria
material e espiritual: na sua grandeza efémera e miúda, os homens (Poetas e inconformistas à parte) não podiam imaginar facilmente que o problema não consistia em melhorar a técnica da saponificação mas acabar com a sujidade. Também não podiam compreender que Nossa Senhora a Leitura era uma forma significante de alienação equilibrada com a grande escravidão da memória. E assim, as primeiras manifestações da libertação desta…
…seriam mal recebidas.
É compreensível, não é?
Rendamos pois a nossa homenagem aos homens do tempo em que a vida Humana não tinha ainda sido prolongada indefinidamente, em que  não se estudava durante o sonho, em que a comunicação não era direta e voluntária, a memória total, as máquinas escravas e os homens livres – a longa noite em que os contactos de homem para homem tinham perdido o caracter de imediaticidade que é o nosso, e a que podermos chamar, a era das mediações.
…era o tempo, em que o amor se fazia através de uma mediação: o psicanalista!
Os poetas diziam das mulheres, “elles coulent comme de l’eau”. Hoje, nesta nossa civilização hermafrodita, não só dos dois sexos se pode dizer a mesma coisa. Mais ainda que todas as relações humanas 
elles coulent comme de l’eau.
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E agora, se me permites, meu caro Carlos, aquele tempo será mesmo o nosso?