Lisboa, INCM
1983
[Excerto]
ALMADA, MADRID E EU
Entretanto, a Idolatria do EU resmunga nos
búzios o direito à vitória.
ALMADA NEGREIROS
c. 1935
Tenho 14 anos. Primeiro contacto com obras de Almada Negreiros: fazia o meu "museu imaginário" recortando todas as "reproduções" que me viessem ao olhar, à mão. No caso de Almada, foi a descoberta de dois exemplares da revista Ilustração com uma entrevista concedida ao jornalista Novais Teixeira, em Madrid (16/12/29). Nessa entrevista, reproduziam-se os painéis da fachada do Cine San Carlos em Atocha, Madrid.
Normalmente só me interessavam as imagens, mas desta vez, como tinha dois exemplares ou por uma estranha premonição fiz uma colagem respeitando também o texto – o que foi decisivo, como veremos.
Nota: O jornalista Novais Teixeira já morreu, mas ainda viveu suficientemente "o meu tempo" para ter escrito uma enternecedora crónica sobre o Dom Roberto, destinada à imprensa brasileira.
(…)
1946
Primeira visita a casa do Almada com uma recomendação de Diogo e Eva de Macedo. Eu organizava a "Semana de Arte Negra" e tencionava, vagamente, fazer uma comparação entre Arte Moderna e Arte Africana. Almada emprestou um Souza-Cardoso e indicou um coleccionador que emprestou um original do próprio Almada Negreiros. Essa entrevista foi, de facto, a primeira "tarde cheia": os tais inesquecíveis diálogos com o Almada Negreiros. Na exposição tivemos outros originais como um de Modigliani e as célebres esculturas de Benim escondidas na Sociedade de Geografia. Houve conferências, conheci o José-Augusto França, e o Fernando Lopes Graça convidou-me a colaborar na Seara Nova. Para nós, os "novos" nessa altura (ainda alunos e desconhecidos) eram os "neo-realistas". Foi a "geração de bater-a-porta-à-Universidade...".
(…)
1967
Depois de vários encontros marcados por uma estória que eu teria contado a Almada (vide Colóquio, n.° 60), combino outra visita em que conversamos longamente, sempre na companhia de Sara Afonso.
Assunto quase exclusivo: Almada e o Cinema / O Cinema e Eu / O Cinema, Eu e Almada. Esboça-se a ideia de um trabalho comum baseado no que então chamava de anticinema, cinema aberto ou em expansão. Em entrevistas subsequentes o título desse trabalho começa a fixar-se na expressão: Almada, um Nome de Guerra.
1968
Forma-se uma Comissão de Apoio ao que passa a designar-se por "filme-inquérito", presidida por José-Augusto França. Deveria ser uma produção independente, custeada pelos artistas plásticos portugueses.
1969
Participo em Pejo, Itália, no "1° Festival de Arte Colectiva" organizado por Bruno Munari (v. crónicas de M. Antónia Palla, in Século Ilustrado). Esta experiência teve resultados decisivos no mixed-media Nós Não Estamos Algures que já estava a ser concebido e ensaiado segundo a estrutura da Invenção do Dia Claro. Este trabalho que subintitulámos Exercício de Comunicação Poética, veio a ser efectivado no Clube de Teatro "1° Acto" em Algés, com a participação de Almada Negreiros e outros poetas. A música foi de Jorge Peixinho e formou-se o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa.
No decorrer do ano realizam-se ciclos de conferências e mesas-redondas (Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Ernesto de Sousa e José-Augusto França). Este último realiza um curso sobre Almada Negreiros na S.N.B.A., integrado na cadeira "Noções de Sociologia da Arte". Simultaneamente: Leilões para apoio a Almada, um Nome de Guerra. Iniciam-se as filmagens.
Julho: Preparo (informação, ensaios, etc.) Raul Solnado para uma entrevista com Almada, para a televisão. Em directo. Esta iniciativa, que teve grande sucesso comunicativo, foi parte da primeira sessão do Programa Zip-Zip.
1970
Junho: morre Almada Negreiros. Tentativa de primeira inventariação da sua obra. Resolvo deslocar esse estudo para Madrid.
Julho e Agosto: viagens frequentes a Madrid. Adquiro alguma documentação, faço entrevistas e tento a localização de edifícios decorados por Almada. Muito pouco subsistira da Guerra Civil. Verifico, como o próprio Almada me tinha já afirmado, que os murais da fachada do Cine San Carlos tinham sido substituídos por mármores. Volto para Lisboa e com alguma angústia vou reler a entrevista de Almada a Novais Teixeira, datada de 1929, e descubro então a palavra-chave na frase: "os panneaux da fachada e do hall". E do hall!!! Teria eu feito um exame apurado a esta parte do edifício?
1971
Fevereiro: volto a Madrid. Os painéis do hall tinham sido pintados da cor da parede e estavam revestidos na sua maior parte por cartazes de cinema, etc. Descobri-os por apalpação... Conversações difíceis e reservadas com o pessoal do cinema. Visita confidencial às caves onde se encontram os restos dos painéis da fachada. (Sobre estes eu tinha já visto alguma documentação mostrada pelo próprio Almada, e nas minhas aquisições madrilenas obtive um conjunto quase completo de reproduções: em duas séries, antes e depois dos painéis serem pintados).
Esta descoberta fi-la no Rastro como quase todas as outras, ao procurar num acervo de fotografias antigas.
Outra documentação ser-me-ia mais tarde fornecida pelo Sr. Esquerro, proprietário do cinema. Ficavam por documentar os quatro panneaux do hall, que consegui fotografar depois de várias diligências.
A minha primeira hipótese (que certos pormenores técnicos vieram posteriormente confirmar): não chegara a haver documentação fotográfica sobre estes quatro painéis, os quais teriam sido produzidos em data-limite. Efectivamente, a nova decoração do cinema destinava-se a assinalar a inauguração da aparelhagem sonora. Volto a Lisboa e encontro-me com Manuel de Brito a quem comunico as minhas descobertas e respectiva documentação. Este, com uma "fé" autêntica, concorda em que é necessário arriscar tudo para salvar o que restava dos já esquecidos painéis. Nas operações que adiante menciono, a sua colaboração foi total, tendo também feito a "peregrinação" a Madrid.
Julho: Viagem a Madrid com Manuel de Brito e um advogado. Apesar de boas expectativas, o proprietário recua na cedência das "obras". Tinha entretanto recebido notícias de Lisboa. Já se efectuara a venda sensacional do Retrato de Fernando Pessoa e num jornal espanhol tinha sido afirmado que as duas personalidades mais importantes do Portugal contemporâneo eram Salazar e Almada Negreiros. Por essa mesma altura e devido a uma fuga acerca do que estava a acontecer, o proprietário tinha recebido uma outra proposta de aquisição.
Depois do regresso a Lisboa, correspondência minha com Esquerro, tentando rever toda a situação.
Setembro: Sem esperar resposta, parto para Madrid, com uma carta de Manuel de Brito contendo as últimas propostas. Encontro amistoso com o proprietário, que responde positivamente às nossas solicitações. (Entretanto eu prestei-lhe alguns "serviços" importantes. Por exemplo, tentar esclarecer uma dúvida que o dilacerava: como era possível ser Picasso, simultaneamente, uma glória nacional e um comunista?).
Trabalho com Sarah Afonso para re-ordenação e classificação da série de desenhos inéditos a que dei o título Maternidade. Viagens com Sarah Afonso ao Porto para a publicação em fac-símile daqueles desenhos. Esta publicação veio a público em Dezembro de 1982 numa edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Leitura dos (então) inéditos Ver.
1972
Maio: Viagem para Lisboa com os fragmentos das obras encontradas na cave. Eram oito painéis, dos quais um totalmente destruído e os restantes em estados diversos de conservação (v. fichas respectivas).
Agosto: Trabalhos para recuperar os painéis do hall, ainda na sua instalação inicial. Viagem para Lisboa com estes painéis. Participaram nestes trabalhos de embalagem e transporte Isaac Jorge e Isabel Alves.
1973
Janeiro: Autorização do Instituto José de Figueiredo para aceitação e exame das obras. Recepção calorosa pelo respectivo Director e outros responsáveis.
Março: Entrada das obras no Instituto José de Figueiredo e primeira avaliação de autenticidade.
Maio: Reunião em Ljubljana, Jugoslávia, com um grupo de artistas e críticos de várias nacionalidades para discussão da convergência entre arte analítica (conceptual) e os trabalhos de Almada sobre o Número. Esta reunião foi comentada por Sheldon Williams, na revista Art and Artists, Londres, Setembro 1973. O crítico inglês, referindo-se ao interesse das reuniões não-oficiais nos ateliers dos jovens artistas, exprime-se em termos que nos parecem curiosamente significativos: "In their flat, in Ljubljana, there is a multitude of projects... Sterling stuff, especially against the background of an enthusiastic Portuguese explaining with slides the Einsteinian marvels of his late compatriote Armada".
A tradução é fácil: o "enthusiastic Portuguese" sou eu; Armada é o Almada Negreiros. E, pelos vistos, o que eu consegui transmitir no meu mau inglês acerca das geometrias pré-conceptualistas de Almada soou aos ouvidos do crítico inglês como maravilhas assimiláveis à teoria da relatividade de Einstein. Por aqui se vê que nem sempre os críticos estão desatentos...
Apresentação durante o Congresso da A.I.C.A., da tese Almada Negreiros e a arte ingénua, discutida em Hiebline (Escola de Generalic).
1977
Faço uma conferência com projecção de slides durante "Alternativa Zero". São examinadas e discutidas as noções de filme-inquérito, filme-aberto e filme-processo. Neste "processo" incluem-se toda a investigação para a descoberta efectiva de Almada e da sua obra; e... este livro!
Realizo duas conferências na S.N.B.A., integradas num ciclo sobre Almada Negreiros, no qual participam também José-Augusto França e Lagoa Henriques. Nessas conferências versei os seguintes assuntos:
a) O significado da obra-aberta Almada, um Nome de Guerra em cujo processo foram incluídas operações de investigação como as efectuadas durante a recuperação dos painéis de San Carlos, sendo exibida documentação audiovisual.
b) Inserção da obra de Almada numa perspectiva polémica da arte portuguesa contemporânea, a qual deu lugar entre outras coisas à exposição "Alternativa Zero". Esta perspectiva foi depois apresentada em várias assembleias, tais como Malpartida de Cáceres (SACOM 1), Colónia (Kunstverein), Coimbra (C.A.P.C.), Évora (Museu), Berlim (Galeria Ars Viva), etc.. E mais recentemente em São Paulo (M.A.C.).
1979
(…) Decorre actualmente a reconstituição deste material; está marcada a primeira sessão universal de Almada, um Nome de Guerra para Madrid, em Dezembro de 1983 (Fundación Juan March).
(…)