Fernando Tunhas, Jornal de Notícias
5 de Agosto de 1965
Esta entrevista de 1965 assinala a mudança de perspectivas de Ernesto de Sousa, de cinema para o teatro e meios audiovisuais mais vastos. Fê-la Fernando Tunhas aos 18 anos. Pouco tempo depois suicidava-se, deixando escrito: “Je veux vivre mais pas aujourd’hui”.
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Será possível aliar o culto sthendaliano do eu ao sentimento agónico do homem dessacralizado? Será possível amar ao mesmo tempo o leite e o vinho, Kierkegaard e as histórias em quadradinhos, Brecht e a ficção científica, o cineclubismo e o bom cinema, Mozart e Françoise Hardy? Será possível falar com igual entusiasmo de erotismo e de uma nova assunção de valores sagrados? Depois de Dom Roberto será possível… um scopitone? Ernesto de Sousa prova-nos talvez que sim.
Sou o mais moderno dos portugueses, lembra de vez em quando. Crítico de todas as artes e como todos os novos cineastas assíduo praticante o bilhar eléctrico, ele acaba de descobrir as maravilhas do pequeno écran enquanto prepara uma longa-metragem de aventuras, arte e ensaio, versão moderna do Cid interpretada por sua actriz francesa e filmada a cores em ecrã largo.
Mas no entanto, as actividades cinematográficas do nosso autor interessam-nos para aqui um pouco menos do que os seus trabalhos como crítico de artes plásticas. Por isso, ao iniciar esta entrevista, ele nos procurou justamente para explicar quais as condições, bem como vulgares aliás, em que a crítica de artes plásticas despertou o seu interesse:
– Embora possa parecer estranho, as ciências estão na origem das minhas artes. Voltei-me para a crítica de artes plásticas porque, tendo muitos amigos pintores, me lembrei um dia de comprar uma mufla para fabricar os pigmentos de que necessitavam. E foi assim, ao fabricar amarelo de Cádmio e azul dá Prússia, que se me ofereceram as primeiras meditações de ordem estética. Homo Faber, Homo Sapiens…
Como ser absolutamente moderno
Sabemos que brevemente vai ser publicado o seu álbum sobre escultura portuguesa. Quais as principais características desse trabalho?
– O álbum Para o estudo da escultura portuguesa é uma edição composta exclusivamente por fotografias minhas e corresponde a uma tentativa de primeiro olhar ou visão polémica da nossa razoavelmente ignorada escultura.
O meu interesse pela escultura vai nele de par com o interesse por uma definição viva, estética e não etnográfica da nossa arte popular, e resulta em parte de uma óptica que ganhei com o cinema e a fotografia. Com efeito, a fotografia da escultura conduziu-me a uma atitude que raiava da estética do fragmento ainda antes de ter lido os trabalhos de Croce e Berenson.
Nesta matéria, a minha única preocupação é ser, como diria Rimbaud, absolutamente moderno. Mas o problema põe-se: como ser absolutamente moderno? Se se trata da nossa própria vivência é necessária uma descoberta de mim próprio. Eu sou original e único, mas esta certeza íntima é pré-reflexiva. É um bem de raiz. Para o edificar racionalmente, é necessário ir à obscuridade das raízes como quem se prepara para recomeçar tudo amanhã. Porque, contradição das contradições, não há começo sem raiz. O resto é epigonal.
De certa maneira: sendo mesmo de maneira certa, essa é também a nossa opinião. E quanto ao seu projecto de filme sobre Rosa Ramalho?
– O cinema é tudo. É acima de tudo uma maneira de me exprimir, como por exemplo escrever, ou encenar uma peça de teatro. No caso de um trabalho sobre Rosa Ramalho, penso que só me poderei exprimir por meios que diria audiovisuais. Por outras palavras, o que procuro é uma associação contrapontística da oralidade da barrista de Barcelos com um qualquer registo – um grafismo – dos seus gestos.
Fenomenologia e realismo
O seu último livro é justamente um ensaio sobre o grafismo.
– Com efeito. A propósito da recente exposição de artes gráficas do pintor Armando Alves, tive oportunidade de escrever um pequeno ensaio em que procurei exprimir a minha certeza de que o grafismo é, não só o denominador comum das diferentes formas de expressão do homem moderno como também o sinal de uma nova civilização em que as palavras e os objectos do nosso convívio readquirirão uma nobreza perdida.
Esse ensaio revela um interesse muito especial pela obra dos pensadores fenomenológicos. Não estará isso em contradição com a sua habitual defesa do realismo?
– Penso que na perspectiva do homem moderno, a fenomenologia, como disciplina deontológica do conhecimento, não pode ser ignorada. Se o mais íntimo é por vezes o mais externo também podemos dizer que o mais íntimo do realismo se pode perspectivar a partir da redução eidética. Assim o entenderam autores como Trau-Duc-Tao e Desantl que discutiram a fenomenologia em face à dialéctica. Note-se sobretudo que a compatibilidade que proponho entre certos aspectos da fenomenologia e do realismo é a posição de um pensamento que se quer dinâmico.
Em torno do neo-realismo
E que nos pode dizer do estudo que prepara agora sobre a pintura neo-realista portuguesa?
– Será mais um álbum da Colecção de Arte Contemporânea, onde já publiquei Júlio Pomar e Lima de Freitas. Vai sair quase ao mesmo tempo dos Surrealistas de José Augusto França e, juntamente com o livro deste mesmo autor sobre os abstractos, já publicado, e um próximo volume sobre o novo figurativismo, completará um aspecto geral da pintura portuguesa contemporânea.
O interesse pelo neo-realismo não me parece no entanto perfeitamente enquadrado nas suas preocupações de modernidade?
– Considero o neo-realismo, depois do movimento modernista do Almada, como a mais importante tomada de consciência dos artistas portugueses contemporâneos. Aliás, neste ponto particular estou inteiramente de acordo com José-Augusto França quando afirma que o surrealismo e o neo-realismo foram, na nossa pintura, movimentos complementares. Trata-se dum fenómeno muito específico da nossa evolução para uma arte inconformista, relativamente aos padrões de um modernismo de fachada dominante por volta de 1940.
E para terminar, gostaria que nos dissesse o que há de novo sobre a sua projectada encenação de O Gebo e a Sombra com móveis praticáveis do escultor José Rodrigues e a música de Jorge Peixinho.
– É um projecto adiado*. Em todo o caso, encenarei um dia O Gebo e a Sombra para ter oportunidade de provar que é a obra mais bela de toda a literatura teatral portuguesa. E, sobretudo, que é também absolutamente moderna.
* O Gebo e a Sombra seria apresentado no Teatro Experimental do Porto no ano seguinte.