Bibliografia

Ernesto de Sousa: Um Mestre Apaixonado

Rui Ferreira e Sousa, O Jornal Ilustrado
14 de Agosto de 1987

[Excerto]



Foi pioneiro em tudo o que fez. Chama-se José Ernesto de Sousa, homem e artista indefinível, perturbador, envolvente. Confessa-se “Sou um ingénuo voluntário, a minha vida é como uma colagem”.

Quem o conhece sabe a importância que ele teve na cultura portuguesa nas suas diferentes vertentes. Considerado um interventor, um impulsionador, um aglutinador, foi marcando gerações.

(…) Se começo assim este retrato de Ernesto de Sousa é porque ele é esta figura tão densa e terrivelmente humana que ninguém o poderá confundir com um pintor, cineasta ou poeta vulgar. Nem sequer o poderá apelidar somente de artista, investigador ou crítico de arte ou muito menos de professor, conferencista ou fotógrafo. Porque ele foi tudo isso, é tudo isso e sobretudo ele foi e é um pioneiro em tudo o que tocou e toca: um interventor, um impulsionador, um aglutinador, um homem que sempre atirou os outros para o centro do palco e delirou de paixão ao vê-los mexer, criar, representar.

Se se pudesse colocar algum apelido em Ernesto de Sousa seria o de mestre. E se procurássemos encontrar o elemento que unisse todas as formas de expressão a que ele se dedicou, isso seria a palavra, esse signo mágico, vital. “a escrita é mortal”, diz-nos Ernesto de Sousa. Pensa editar um livro com poemas, artigos, imagens. Livro só de palavras já fez. Uma vez encontrou em Janas uns livros roídos pelos ratos. Foi-se a eles, voltou-lhes a capa e fez um graffiti. A arte é tudo isso. “E os livros tinham ficado bem ratados” – acrescenta Ernesto de Sousa.


Fala Pouco de si próprio

Não lhe interessa falar em gerações, mas sim em movimentos, grupos, pessoas. Fala muito pouco dele e quando isso acontece salta rápido para aquela exposição que realizou com o pintor A, aquela instalação com o pinto B ou o escritor C, aquela mostra com o cineasta D. São dezenas de nomes que atravessaram a vida de Ernesto de Sousa ou foi ele que atravessou a vida de muitos artistas, dando-lhes sementes, abrindo-lhes a veia da criatividade, para que pudessem seguir depois um caminho próprio onde as ideias ele deixaram rasto. É ainda cedo, aliás, para avaliarmos com exactidão as marcas implantadas por Ernesto de Sousa em sucessivas gerações de artistas plásticos, pintores, cineastas e críticos.

Perturbam-no as homenagens, embora não as rejeite. A exposição “Itinerários”, que esteve aberta ao público na Galeria Almada Negreiros em Lisboa, por iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura, funciona um pouco como essa homenagem devida, nas palavras de Teresa Gouveia, "ao animador cultural e investigador de diversos caminhos da estética e da história da arte". Trata se de uma retrospectiva de seis exposições do autor, uma mostra possível, dirigida pelos comissários José Luís Porfírio e Fernando Pernes, das instalações/exposições "A Tradição como Aventura" (1979); "Isto é Pintura" (1977); "Pre Texto II" (1982); "Esse Ouro Dantes" (1986); "Um Quadro para o ano 2000" (1987); e "A Terra Prometida" (1979).

"Ninguém mais do que Ernesto de Sousa, em Portugal, é merecedor de uma homenagem sem troça” escreveu José Augusto França no catálogo de  “Itinerários”. E uma homenagem que, além do mais esteve presente numa galeria que tem o nome de um artista cuja obra marcou para sempre o nosso entrevistado: José de Almada Negreiros, para quem "a alegria era a coisa mais séria da vida".

"Almada era um amigo, um homem de grande qualidade. O que me interessou mais nele foi o seu pensamento, além dos livros e da obra plástica. Há até uma história engraçada. O pintor Souza Cardoso propôs-se editar o livro de Almada K4, Quadrado Azul. Foi por essa altura que vieram a Portugal os Delaunay. Como o projecto não avançava, o Eduardo Viana começou a pintar um quadro abstracto com o mesmo título. Ora o Almada, devido à demora, telegrafou ao Souza Cardoso. Esse telegrama foi apreendido, desconfiando a polícia que se tratava de um código de espionagem por causa do K4 Quadrado Azul. Pensaram que seriam espiões russos. Foram presos."

Almada, foi para Ernesto de Sousa um "Nome de Guerra" ou a sua "Guerra" como ele escreve no livro Re Começar, 1983 (Imprensa Nacional). Esse Almada que disse: "Nós somos do século d’inventar as palavras que já foram inventadas." Frase que funcionou como epígrafe para o pintor na Bienal de Veneza de 1980, juntamente com "A minha pátria é a língua portuguesa" de Fernando Pessoa. Aí Ernesto de Sousa foi comissário da representação do nosso país.


Painéis de Almada vieram clandestinamente

Mas foi em 1972 (Almada morrera em 1970) que Ernesto de Sousa salvou, com a ajuda de Isabel Alves e Isaac Jorge, os painéis de Almada Negreiros do Cine San Carlos de Madrid, depois de ter seguido uma pista deixada na entrevista de Almada ao jornalista Novais Teixeira na revista Ilustração, Madrid, 16 de Dezembro de 1929.

"Demorámos uma semana a tirar os painéis, diariamente desde as 6 horas da manhã até à hora do cinema abrir. Trouxemo-los clandestinamente numa Ford Transit. Soubemos que havia uma hora em que transmitiam na televisão espanhola uma telenovela de grande audiência. Passámos nessa altura, por duas vezes, com os painéis embalados. Estávamos a arriscar 30 anos de prisão."

Os painéis, baixos-relevos em placas de estuque pintadas, deram entrada no Instituto José Figueiredo em 1973. Os quatro do hall, –  Jazz, Gato Félix, Circo e Bar de Marinheiros  estão recuperados e considerados como obra de valor pelo Património, os outros da fachada, como não estão recuperados, ainda não o foram.

Anti-cineasta, anti-pintor, antigénio, com "uma infinita modéstia luminosa, um saber ilimitado e invisível, uma paciência admiravelmente corajosa, uma obstinação exemplar" nas palavras de Eduardo Prado Coelho, José Ernesto de Sousa teve uma evolução muito íntima, muito séria, respondendo a necessidade e apelos de criatividade que vêm desde o dia em que se maravilhou com um presente: urna máquina de projecção de cinema para amador, o seu Pathé-baby, destruído por um incêndio aos 10 anos de idade (1931), uma catástrofe. Um aparelho de projecção fixo foi outro dos brinquedos que o incentivou a apaixonar-se pelo cinema.

Três décadas depois, em 1962, estreia o filme Dom Roberto adaptação de uma novela de Leão Penedo, com o actor Raul Solnado. É um filme-charneira entre o cinema comercial, "com, mais caspa do que miolos" como escreve Alves Costa na sua Breve história do cinema português (1896–1962, Biblioteca Breve, 1978), e o cinema novo , Alves Costa: "É talvez arbitrário considerar 'Dom Roberto' o filme-charneira. o certo é que, a partir dali, a história do cinema português seria outra. Aceitemos que Dom Roberto foi uma página que se voltou."

Ernesto de Sousa tinha sido fundador, no início dos anos 40, do primeiro cineclube português, o "Círculo do Cinema2 de Lisboa. A sua ligação ao cinema levou-o a contactar com René Bazin, Jean Delannoy, Agnès Varda e Alain Resnais. Foram uns anos de intenso estudo e de grande actividade como teórico e crítico de arte moderna: a arte culta, a arte popular, Sartre, Merleau-Ponty, Rosa Ramalho, o Teatro, Bento de Jesus Caraça, Seara Nova, Imagem, Mundo Literário, o Neo-Realismo, o Surrealismo.

"Eu era antifascista além do mais. E ser neo-realista era uma maneira de ser antifascista, mas eu tinha uma apetência pelo surrealismo. Mais tarde vi que havia uma relação contestatária nos dois movimentos. muitos passaram do neo-realismo para o surrealismo."

Foi amigo de Rosa Ramalho, descoberta pelo pintor António Quadros. Em 1964 organiza em Lisboa a exposição "Quatro Artistas Populares do Norte: Barristas e Imaginários". Nela participam Rosa Ramalho, Mistério, Quintino Vilas-Boas Neto e Franklin Vilas-Boas, este descoberto por Ernesto de Sousa: "Ele era analfabeto, engraxador e fazia aquelas esculturas de madeira como a Mulher burro. Morreu atropelado."


Dom Roberto premiado em Cannes

Itália, França, Espanha, Alemanha, são alguns dos países ligados às suas escapadas ao estrangeiro. Entrevista Man Ray, Vittorio de Sica, organiza colóquios e publica livros sobre arte e cinema. Em Cannes (1963) o Dom Roberto é distinguido com o prémio da Jovem Crítica e recebe Menção Honrosa pelo Melhor Filme para a Juventude. Neste mesmo ano, em 20 de Maio, Ernesto de Sousa está encarcerado no Aljube. Tinha sido preso na fronteira quando se aprontava para seguir para Cannes e receber o prémio:

"Foi a minha terceira prisão. Eu estava no Aljube, vesti-me com o fraque que iria levar para Cannes e fui contando vários episódios. Todos os companheiros estavam a ouvir-me contar e ler poesia: operários e até guardas. Então os presos confeccionaram um diploma para me oferecer e premiaram assim a realização do Dom Roberto. Foi muito bonito."

A PIDE tinha-o prendido, pela primeira vez, em 1948, numa reunião do cineclube, no dia da estreia da peça Bodas de Sangue para a qual recebera convite. Mais tarde fora preso por se ter deslocado à Rússia a convite de Jean d’ Ivoire. Uma outra vez, por engano: confundiram-no por um bancário de nome José Marques Sousa, São pequenos apontamentos de uma vida recheada de aventuras e de exaltações:

"A PIDE bateu uma vez na minha casa da Travessa do Fala-Só à procura de uma editora clandestina. Tinham-se enganado no andar, Entraram e como viram muitos livros pensaram que era ali. Levaram a Arte Russa. Mas eu chateei-os e obriguei-os a ver as prateleiras todas. A editora era por cima."

Passou pelo teatro (encenou O Gebo e a Sombra de Raul Brandão, 1966, no Teatro Experimental do Porto); iniciou as filmagens de Almada, Um Nome de Guerra em 1969; participou no movimento Fluxus do músico George Maciunas, 1966; publicou ensaios, deu aulas na SNBA, fez filmes experimentais em Super 8 mm. (Havia um Homem que Corria sobre poema de Herberto Hélder, 1968); organizou e participou em colectivas, encontros, festivais. Foram uns anos 60 ricos, devoradores, exaustivos.

Também em 1969 apresentou no Clube Primeiro Acto de Algés o mixed-media Nós Não Estamos Algures, com a participação de Jorge Peixinho e dos que a partir daqui irão formar o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Tratou-se de um exercício sobre a poesia de Almada Negreiros, Luiza Neto Jorge, Herberto Hélder e Mário Cesariny. Este último protestou pelo facto dos seus poemas terem sido lidos por empregados de escritório e sem autorização. Foi uma acesa polémica entre Ernesto de Sousa e Cesariny. Este escreve o artigo Reina a Paz em Varsóvia. Ernesto de Sousa responde com outro artigo, A Prima Dona, alegando que Pessoa também fora empregado de escritório.

Mail Art, Bad Painting, Arte Conceptual, Expressionismo, Bodyart, Art Pop, diz Ernesto de Sousa: "Estamos a voltar ao popular por diversas vias. Aqueles foram movimentos que deram origem ao modernismo. Actualmente está-se no esgotamento da reacção modernista, hoje há mais mistura. Só as tendências derivadas da fotografia irão ficar para sempre."


"Alternativa Zero": um marco

Anos 70, o 25 de Abril, as manifestações de rua, os Festivais de Vanguarda, a agitação, as conferências, as polémicas. Ernesto de Sousa mantém-se cada vez mais incómodo, sempre interveniente. Conhece e colabora com o artista plástico Wolf Vostell e visita-lhe o museu em Malpartida de Cáceres, 1976. Em 1977, a colectiva monumental "Alternativa Zero", que teve lugar na Galeria Nacional de Arte Moderna em Belém, em Fevereiro e Março, seria o marco decisivo para uma década conturbada. Veio o Living Theatre, movimentaram-se centenas de pessoas, várias instituições. "Alternativa Zero" teve como subtítulo "Tendências Polémicas na Arte Contemporânea Portuguesa": happenings, música, teatro, filmes, rituais.

Ernesto de Sousa não para, incansável, demolidor: Brasil, Suíça, Holanda, Espanha, Estados Unidos. Aqui, em Nova lorque, apresenta em 1983, Ultimatum, uma sequência de Almada, Nome de Guerra. Foi, segundo o autor, um dos seus projectos mais bem conseguidos. O seu nome figura entre Marcel Duchamp e Joseph Beuys no relicário de artistas Kunstlerreliquiar de Dietrich Helms.

"O alemão Beuys é a figura mais carismática, um grande artista de artes plásticas e performance, embora não tenha uma obra muito visível. Era um pouco o ídolo da juventude" conclui Ernesto de Sousa, falando de outros que não dele. Dele, porém, se fala quase sempre parcelarmente, porque tem sido mão de muito ofício e difícil de catalogar.

Eduardo Prado Coelho escreveu sobre Ernesto de Sousa em "Itinerários": "É certamente o mais discreto, invisível, silencioso, clandestino e apaixonado mestre de múltiplas gerações. E essa a sua imensa obra: difusa, transparente, transversal, dispersa e fluÍda nesse seu jeito inconfundível de saber corno nos atravessarem." (…)

“Só as tendências derivadas da fotografia irão ficar para sempre” (Ernesto de Sousa)

É uma figura tão densa e humana que ninguém o poderá confundir com um pintor, um cineasta ou poeta vulgar.