Bibliografia

Exemplo Raro num País sem Mestres

Augusto M. Seabra, Expresso
15 de Outubro de 1988

O último meio século português poucas terão sido as aventuras intelectuais como as de José Ernesto de Sousa.

Uma aventura multifacetada, com constantes e às vezes simultâneas deslocações de interesses e de posições teóricas. Uma aventura que, por isso, alguns considerarão de incoerente, não vendo a sua maior razão de ser: a atitude mesma.

Ao longo de quatro décadas, Ernesto de Sousa passou por ortodoxias e heterodoxias, num percurso que, iniciado sob o signo do neo-realismo se concluiria na abertura à pós-modernidade. Dizer que foi um homem estranho a dogmas poderia ser muito bonito, mas não só seria factualmente incorreto como também implicaria o desconhecimento das circunstâncias políticas que envolveram grande parte da sua atividade.

Nunca deixou de nele estar presente uma dimensão "social" oscilando entre a postura de resistência e o desejo de liberdade no que de mais amplo tem, isto é, de possibilidade de manifestação do imaginário de cada um. Essa terá sido a razão porque soube a cada momento, em cada contexto histórico-cultural. Escolher a posição, que lhe pareceu mais interessante. Às vezes pendeu para a ortodoxia e mesmo para o paternalismo (como na famosa polémica com António H. Escudeiro sobre "o cinema puro" na revista Imagem em 1958 – primeiro anúncio de divergências teóricas que se iriam clarificar no cinema português na década seguinte), outras vezes descobriu que para alguns puros ortodoxos não deixava de ser suspeito.

Para além da sua incessante prática no campo das artes plásticas, José Ernesto de Sousa ficará também lembrado pela sua atividade no Cineclube imagem, pelo projeto da Cooperativa do Espetador e pelo filme Dom Roberto. Mais do que outros gestos, o filme ficou, existe como objeto visível. A ineludível mudança de olhar que veio introduzir no cinema português não desmente a sua fragilidade e o seu neo-realismo tardio. Todavia a amplitude do gesto, da conjugação de esforços que foram necessários à sua feitura, não pode ser ignorada. Do gesto, da atitude.

Gesto, atitude, que marcaram também o seu menos lembrado empenhamento no campo musical, outra faceta de um aventuroso percurso que passou do militantismo das Heróicas de Lopes Graça à cumplicidade ativa com Jorge Peixinho; por aqui o conheci, aliás, quando em 1972 se estreou (e, se bem me lembro, éramos os mais entusiastas na sala do São Luiz) Ma Fin Est Mon Commencement (Homenagem a Machaut), obra que por cá assinalava, o que era evidentemente desconhecido na altura, a passagem de uma "vanguarda", como ainda nos anos 60 era concebível, ao que hoje entendemos por pós-modernidade.

Operador cultural, quer no sentido crítico-interventivo, quer no de fazedor, José Ernesto de Sousa terá uma obra da qual é fácil dizer que "tem pouca substância". Todavia, os termos são outros, porque nele sempre a operação precedeu a obra, não apenas no sentido das intenções, não apenas no da conjunção de operação e obra (a performance) mas fundamentalmente na disponibilidade, na abertura, na atenção que são apanágios da prática crítica.

Também de outros, em outras paragens, retemos mais o gesto, como despoletador de virtualidades, que a obra acabada. Em todo o seu percurso, Ernesto de Sousa: uma aventura intelectual multifacetada com todas as suas contradições, José Ernesto de Sousa sinalizou as aventuras da crítica, não como recensão perdida na lógica das ofertas no mercado cultural, não como prática teoricista, mas como captação de sensibilidades e enunciado de outras virtualidades.

Será necessário acrescentar ainda que, num país sem mestres, o seu exemplo foi raro, senão único, e que por isso não poderá deixar de continuar a ser atendido em qualquer consideração do gesto crítico?