Inédito
c. 1969
escrevo este artigo revoltado cada vez me é mais difícil escrever tudo o que obcessivamente e urgentemente
(peço ao leitor que complete as frases como muito bem entender. E a pontuação também
isto não é modéstia é convite a uma outra
forma de trabalho colectivo leitura operativa e a culpa é nossa se o
leitor preguiçoso)
Bom. Este artigo deveria chamar-se: O FILME ALMADA, UM NOME DE GUERRA OU UMA TENTATIVA DE ENSAIO E PROVOCAÇÃO-PARTICIPAÇÃO ATRAVÉS DO CINEMA
era um título muito sério. Como diria o Cesariny: ele há tantas maneiras de compor uma estante!
e além disso MAS
chama-se anti-cinema, ou melhor: anticinema.
por razões circunstanciais se não
fossem as circunstâncias (excelência da crítica, ausência da crítica,
excelência da crítica, ausência da crítica, excelência da crítica) chamar-se-ia
ANTI ANTICINEMA
assim resolvemo-nos pela modéstia
“Vivo pelo cinema e para o cinema”
disse um cineasta português jovem
quási jovem ainda jovem
Coitado!
… portanto, o filme almada um nome de guerra (ou o “filme que-se-está fazendo” como disse um jornalista de quem até gosto muito) não é um filme. (Um filme está-o fazendo o Macedo, com muitos caches e contra-caches, naturalmente. E subsídio e produtor encartado. Aliás o Macedo sabe do ofício e vai “meter”, consta e é lógico, entrevistas e a bomba atómica. Aliás, o Arquitecto Macedo. Que além de saber do ofício je radote é um excelente colega e até vai perdoar que eu me “meta” com ele. E ele é mesmo bom rapaz e acredita na indústria e no fomento. Foi por isso que ele fez as balas. O César – outro cineasta novo, ainda mais novo e já-génio, é que não percebeu nada. De resto o César é inteligente e basta. E segundo ele diz – e o que ele diz escreve-se – é culto.
Uma observação, antes do parêntesis acabar: isto pode parecer conversa de família. Mas não é. Quem de César só conhece o augusto não é do seu tempo, nem tem modos. Agora e aqui, e para elucidação definitiva: O Macedo (arquitecto) é pela dobragem, o César (culto) é contra.
fecho parêntesis só queria ainda chamar a atenção para o respectivo sinal
ainda que seja assim pela ausência
com isto abro um pequeno parêntesis já é vício com dois pontos e agora reescrevo-os: o leitor inteligente já percebeu, eu estou a destruir-lhe a leitura habitual normal inconsequente digestiva
viva participante e estética deverá ser a leitura aberta Não é apenas uma questão de forma mas parte importante daquilo que
(Por isso dantes havia belos livros livros de-devoção. Agora também, mas só para ver com a menina dos olhos Isto é uma consequência inevitável de uma cultura diacrónica, isto é, e no caso que nos ocupa: detestável clivagem entre o leitor activo e o leitor passivo, o voyeur e libertino
livros revistas que se folheiam para ver apenas ecrãs – ó saudades do Noronha da Costa, antes da descoberta do caminho trágico-marítimo para o Brasil!)
ecrãs e génios o César e o Noronha da Costa porque se fazem eles génios caseiros ainda agora ainda agora? Por causa da nossa preguiça, da nossa imensa e preguiça e talvez a maior do mundo actual. Já não viajamos, ou só viajamos a fingir. Ao alcance da mão que deveria ser de semear ( é assim não é não senhor) em Trieste (200.000 habitantes), em Barcelona, em Londres, em Wroclaw, dezenas, centenas de operadores estéticos trabalham a mesma a mesmíssima comunicação e não se incomodam com isso e bem se lhes dá até renunciaram à palavra artista e ainda aqui e ainda aqui entre nós se anda com o duplo-decímetro de génio, do artista de vanguarda, da vanguarda
bem se lhes dá porque o objectivo fundamental é bem claramente outro, nem a glória caseira, nem o fomento, nem a indústria:
MAS UMA ARTE COLECTIVA UMA ARTE DE PARTICIPAÇÃO
ARTE ABERTA OU ANTI-ARTE (é o mesmo)
por exemplo o cinema
destruir reconstruir?)
destruir o cinema
não como acto gratuito
nem como provocação
(hoje a provocação é uma técnica)
Mas sim
como PRO VOCAÇÃO (”Nos somos realistas, queremos o impossível”)
o cinema é o ópio do povo ( é com “efeito” a maleita do intelectual-muito-culto)
(acreditar ainda na indústria cinematográfica – ó arquitectos! Exclamação ainda citando o Cesariny é como acreditar nos
estupefacientes… antigos Ora agora que já temos a televisão que é o LSD do povo porquê voltar aos velhos alucinogénios, nítida e medicinalmente mais nocivos? Bibliografia recomendada sobre este assunto: Memórias de um fumador de ópio, em livro de poche ao través dos
PARAÍSOS ARTIFICIAIS)
é o ópio do povo é tão somente um paraíso artificial
bom para uma civilização de voyeurs e de apóstolos do fomento, da tecnologia e do milagre económico
mas não para nós que somos realistas
queremos o impossível
absolutamente modernos (o que não é uma vanguarda qualquer) mesmo nesta matéria: dolls (a propósito, e só para que fique registado: o tradutorzinho que legendificou The valley of the dolls, último filme em que podemos ver a malograda Sharon. Tate, cujos maravilhosos seios tiveram um destino vietnamita, por Vale das Bonecas era um tradutor além de ignorante sem imaginação. A menos que fosse uma senhora, uma senhora também muito profissional, uma autentica profissional portuguesa. É verdade que estes erros dão alguma razão aos arquitectos e aos tecnólogos Mas que fazer? É preciso sustentar a batalha em duas frente uma contra o nosso atraso tecnológico, outra contra a tecnologia)
the dolls a debatida questão sociólogos, jornalistas e propagandistas obsoletos debruçam-se-sobre-ela quando hoje isso
também não passa de uma técnica também uma técnica de pro vocação
estimular para quê? (Para o impossível encore Nós somos realistas encore) Ora o cinema transformara-se transformou-se (como toda a arte) em contra-estimulante. Em fechamento. Em máquina entrópica de calmaria – em voyeurismo.
mesmo nas suas formas diziam os jornalistas-críticos-muito-intervenientes nas suas formas mais intervenientes o documentário o cinema (pseudo) verdade a denúncia o cinema já não entrava em nenhuma batalha de nenhumas ideias pela simples razão de que as ideias eram pobres ou nenhumas ideias não eram já nem Ideias nem ideias-impossíveis ideias-acção Eram sinais mortos código de nenhuma mensagem
Fechamento também sobre a consoladora doutrina consoladora farrapos de burocrata cadáver adiado militância sem risco só registo antes de útil inútil bolorento e retrógrado e como todo o registo passado Digo isto mesmo das formas mais intervenientes a classificação é deles E que dizer do resto? Do cinema-arte? Luxo de novo rico falso rico (por definição falso e rico) último luxo do condenado de homem sem definitivamente vocações VOCAÇÃO
Hoje as coisas pelo menos podem ser claras. Só a vocação conta, o impossível. A vanguarda, a modernidade, só podem ser PRO VOCAÇÃO.
Demoremo-nos sobre a ideia de vanguarda, de modernidade de ser querer
ser absolutamente moderno
(se quiséssemos dizer extensamente sobre este assunto teríamos que repetir uma experiência já feita – ó Lautréamont! Exclamação citando ainda o Cesariny – pegar na maioria dos textos escritos sobre a matéria de entre os mais ilustres é bem de ver e reescrevê-los ao contrário
na impossibilidade e na inutilidade de o fazer resumamos)
a ideia de vanguarda, de modernidade que não que nada
que nunca a de estar europeiamente em dia de ter o tal medo corrosivo e provinciano de ser provinciano de ter relógios e acertados de continuar na ilusão oitocentista de um centro ou de centros culturais
de maîtres à penser de actualização
a vanguarda é inactual
nada tem a ver com a cultura (com a alienação)
não se aprende
faz-se
é-se eticamente
VANGUARDA a mais elementar necessidade de sobrevivência a todas as
catástrofes da razão e da fé a todas as outras naturais ou seja
humanas humanas ou seja naturais catástrofes de um mundo sem centro
Elementar quer dizer de início sempre
a vanguarda é um rito de passagem
como a liberdade
VANGUARDA como investigação “Nós somos realistas, queremos o impossível” (isto ensinou-me o Fanha que o tinha lido, ou tinham lido por ele em certa parede de Paris o Fanha segundo os códigos era meu aluno: aprendi muito)
como investigação e descoberta, descoberta de um novo ou de novos rituais de participação e unanimismo
arte colectiva, operação estética, metafísica provisória
re encontro
PRO
VANGUARDA regresso ao simples e ao humilde, COMEÇAR
começar é a palavra-chave do jovem Almada Negreiros (Palmada no Almada? Porque não? Mas que não seja a palmada de um tonto
sim jovem ingénua e astuciosamente jovem
“eu sou um ingénuo voluntário” diz ele lucidamente
quem em 1915 escreveu a A Engomadeira
(a mais bela a mais jovem a mais vanguardista
A mais moderna a mais tradicional novela
portuguesa) e em 1969 só pensa em
COMEÇAR
começar como um rito de passagem PRO impossível (e não para o impossível o que seria academizar institucionalizar o rito – absurdamente)
a ideia de vanguarda ou surge implicitamente com acaso ou sem acaso quanto aos apelativos (impressionistas, fauvistas, dada) construtivamente
ou surge explicitamente e neste caso não poucas vezes é já uma ilusão de modernidade, um academismo
(atenção, é conveniente não confundir esta última situação com a de certos revivalismos falsos revivalismos exemplo: a Renascença, o neo-dada, a moda mais que moda o modo hippie pela empatia, e outros)
Neste-nosso-tempo (hoje as coisas são pelo menos claras ou o podem
ser) a persistência do academismo é revolvida pela crescente obsolescência
da Obra das obras que se pretendem acabadas e completas
expressão de indivíduo para indivíduo-ou-indivíduo romantismo serôdio da genialidade individualista “Ter uma obra” “a minha Obra” “a obra de” são coisas que ainda se ouvem ou se pensam para aí e para além do seu valor imediato de uso… ele há tantas maneiras de compor uma
estante de levantar a gola do peludo de endireitar os colarinhos e de
os engomar ou mandar engomar ou comprar outros Ilusões ilusões
obsoletas de continuidade
MAS deixar crescer os cabelos ou amarrotar os colarinhos, é como comprar apenas a Elle ou o Lui ou noutra esfera os Cahiers du Cinema ou fazer-viagens-a-fingir de avião
ou, ainda em pensamento
é também engomar com a papa feita do Moderno
também, também nada tem a ver com a
ideia-acção de VANGUARDA
em tudo isto é preciso pensar dizia a pobre da Gelsomina ao bruto do Zampano é preciso pensar
a descrição da vanguarda por sua vez no teatro e no cinema e noutras esferas o underground o cinema em expansão os happenings e os envolvimentos a Lanterna Mágica o novo realismo a mec arte e desde o Berliner Ensemble ao Living e a Grotowski, o anti-teatro e o Arrabal estas referências as exaustivas classificações necessárias é certo não chegam
não chegam a descrição não chega e são muitas vezes detestáveis as exaustivas classificações (à francesa)
porque não passam porque se resumem se reduzem quási sempre senão a cópias e a preparação epigónica a mero trabalho de interpretação, e como disse, já não me lembro onde, ou lho ouvi, ao jovem Almada –
a interpretação é a coisa mais ignominiosa do mundo a mais efectivamente pobre “um rosário sem orações"
a interpretação é sempre equívoco atoro maior engano de uma floresta de enganos este-nosso-tempo este-nosso-modo
fazer um filme sobre o almada negreiros
um documentário sobre o almada? um registo, um
retrato “para ficar alguma coisa” ?
como tudo isso seria ignominioso e pobre!
O verdadeiro(?) homem não se retrata todos os retratos são mentiras ainda que um homem pudesse ser um mito um mito pudesse ser um homem (ó doutores! ó críticos!)
ele está ali a trabalhar
como um operador estético
como um operário estético
como um pro vocador estético
se quiserem como um actor moderno
(um actor do tempo dos happenings e do Living) como um actor-autor
ou ainda se quiserem um poeta-sempre
fingidor, clown e tudo
ele dança na corda bamba? resistiu. desde os tempos heróicos dos “humoristas”? constrói uma bela casa de que desconhece o plano (Rui Mário)? e se deixa condecorar? e resiste?
e resiste? e resiste como um autentico humorista?
e tudo isto cá (cá cá)?
pois então tudo se explica: não faço um filme sobre o almada
faço um filme com o almada
ou melhor
com o almada (e porque ele é exemplar) tento fazer uma PRO VOCAÇÃO
vocação a que? para quê?
O IMPOSSÍVEL
o fim dos artigos (com os quais se fica revoltado só) o fim dos voyeurs ( e o fim da sua espécie mais nefasta: os voyeurs comentadores de café ou anónimos comentadores de suplementos pseudo) o fim da passividade o fim da não-crítica (espírito e não profissão) o fim dos colarinhos engomados e dos cabelos-compridos-para-ver
o impossível
e porquê exactamente o almada?
por causa desse carácter exemplar exemplar re-existência
sim exemplar com defeitos e tudo
porque ele é sem-mestre (J.-A.F.) é ainda a melhor resposta
à “nossa” apagada e vil tristeza
nossa não deles
porque nós somos realistas queremos o impossível