[brochura], Semana de Arte Negra, Lisboa, Escola Superior Colonial
Março de 1946
É costume considerar a arte africana como uma arte primitiva. Esta designação não estará errada conforme o que se entender por arte primitiva – que não é necessariamente inferior, secundária ou imperfeita. Por arte primitiva deve entender-se aquela simplicidade expressiva e espontaneidade, características da arte negra. Contudo, será difícil compreender qualquer coisa nesta matéria se considerarmos do mesmo modo, todas estas produções artísticas: como sucede nos outro casos, há entre os artistas negros, alguns, cuja arte atingiu um nível tal de maturidade que, não só ultrapassam o nível médio da maioria, como, não recearemos em os colocar entre os maiores de todos os tempos. É o que sucede com o ignorado artista da escultura estranha, Mãe e filho (n.º 1) – onde a deformação atinge um nível emocional inesperado – não inferior ao das deformadas estátuas dos túmulos dos Médicis, de Miguel Ângelo. Na mesma categoria de elevado nível artístico, mas ao contrário, calma e hierática, lembrando refinamentos de artista egípcio, é a escultura bijagó Mãe e filho (n.º 2); do mesmo modo grandiosa em qualidade, é a escultura bijagó Ídolo de Sonho – esta também deformada a atingir o paroxismo da inquietação, linhas da face, estiramento dos membros e pescoço, numa unidade expressionista de cansaço (n.º 3).
Mas só podemos compreender as obras mais completas se tivermos assimilado o estilo das obras médias, isto é o modo plástico, (a técnica) como o artista soube traduzir as suas visões e emoções. Isso não é fácil, na verdade. Mas todos nos julgamos suficientemente cultos para nos pronunciarmos com superioridade. Ora, o primeiro passo de quem quer, sinceramente, compreender para sentir – deve ser, encher-se de humildade, porque “só estima a arte quem na sabe”. A arte do negro é vária, conforme a região e o temperamento individual. O “manipanço” da nossa ignorância vai desde as mais serenamente realistas às mais abstractas ou expressionistas obras de arte...
Se ele é o homem sem penosos cuidados, a quem as quatro estações os outros homens e as suas ferramentas trazem regularmente segurança e bem-estar, a sua arte é contemplativa, embora sem passividade; ele dar-nos-á um realismo cheio de simplicidade, traduzido por subtis modulações plásticas, onde a deformação, imperceptível por vezes, é suavidade, ritmo dançante, (n.º 4) ou, porque este homem sabe sorrir despreocupado anedótico (n.º 5). Certa escultura de animais é um exemplo frisante, deste realismo cheio de calma e ingenuidade (n.º 6). Mas o realismo da arte negra é por vezes enérgico, cheio de carácter, como raros artistas europeus atingem (n.º 7).
Mas há, sobretudo, homens que sofrem e vivem inquietos. Eles traduzirão, tão bem como os melhores, as dores e instáveis alegrias, em formas trágicas, violentas, por vezes grotescas. Irmãos de alguns românticos e expressionistas europeus, têm alguma coisa mais a dizer além do que vêem – mas dizendo-o, continum plásticos e verdadeiramente artistas (n.º 8).
Outras vezes é a fantasmagoria sem fim, criam-se imagens de medo e pesadelo – como as dum Bosch ou um surrealista (n.º 9).
Mas uma grande maioria da arte negra é simplesmente construtiva sem ser indiferente à vida, quer dizer, que consegue exprimir-se utilizando meios essencialmente abstractos (composição, geralmente, de elegante e simples simetria) sem todavia perder o ar de quem vive, interferindo intensamente na vida, por exemplo, sem perder na sua deformação plástica, o aspecto de quem ri de escárnio ou pragueja emocionado. É esta a corrente da fantasia e da inspiração incomparável (n.º 10).