Colóquio-Artes, n.º 36
Março de 1978
[Excerto]
(…) Uma pa-ciência anagramática
Sabia Ana Hatherly que um ano depois de ter publicado o seu alfabeto estrutural (1967) Étiemble exponha em conferência (só publicada em 73) uma proposta de vocabulário muito semelhante ao seu? Que anteriormente aos seus simbólicos cartazes rasgados da "Alternativa Zero" já tinha havido toda uma escola de laceradores de cartazes? Que Fontana rasgara mil telas antes da sua performance na Quadrum? Nenhuma importância. Pelo contrário. o seu caso é – repito-o – exemplar. (Num mau filme de ficção científica diz a Eva tentadora para o astronauta exemplar: "Disseram-me que Você é um para dogma de virtude, e eu nunca conheci um Paradigma...")... Bom, é isso, a Ana é um Paradigma. E digamos desde já que aquelas comparações (como muitas no género que se fazem para aí: os artistas portugueses andam a imitar os vanguardismos internacionais) são, no geral, superficiais e provincianas. Porque, principalmente: as paredes de Lisboa são as paredes de Lisboa. E não só as paredes dilaceradas esperançadas de Abril ou Maio ou... Também as que já lá estavam e o Sítio de onde elas desaparecem quotidianamente. Sobre esta realidade, a Ana Hatherly construiu a célula de "Alternativa Zero" com os cartazes de Lisboa que antes de dilacerados já tinham sido escritos com folhas brancas de papel. Geração do vazio. É esta capacidade de escrever silêncio que define o trabalho da Ana Hatherly, e que não tem nada que ver com outra coisa. Como as paredes de Lisboa. Paradigma.
E onde se pode ver isto melhor é, claro, na coerência, na paciência de todo um trabalho, toda uma vida. A redução dos cartazes, com suas precisas e dilaceradas mensagens (super mensagens) é perfeitamente complementar do encontro com a escrita arcaica chinesa, e o seu vazio e o silêncio de todas as significações imediatas: "... ao iniciar esse estudo estava fascinada e obcecada"… "ia aprofundando o meu conhecimento gestual"... "na destreza"... "(n)o conhecimento do acto criador e da sua gratuidade". "Não atribuí expressamente nenhum valor semântico a cada um desses elementos"... "quis apresentar uma proposta em aberto". (Quem tiver tido a oportunidade de alcançar, abrir, consultar aquela pequena mala de aspecto vulgar onde se contém toda ou quase toda a obra "anagramática" perceberá fisicamente: um Paradigma em que quase se pode tocar como no filme de ficção científica.)
Uma proposta em aberto
POEMAD'ENTRO (não) realizado em "Alternativa Zero" e Rotura, realizado na Galeria Quadrum, são duas manifestações conjuntas de Ana Hatherly, e pontos altos da arte (polémica ou de vanguarda) portuguesa contemporânea. A pequena história da performance entre nós não poderá nunca fazer-se sem os referir primordialmente. É oportuno lembrar aqui os happenings da que Ana foi co-autora: Concerto e Audição Pictórica, 1965, na Livraria Divulgação; e Conferência-Objecto, em 1967 a Livraria Quadrante, ambas de Lisboa (e no Ateneu do Porto), Salette Tavares, E. M. de Melo e Castro, Jorge Peixinho contam-se entre os restantes co-autores destes acontecimentos.
POEMAD'ENTRO resultou de um equívoco... com as possibilidades operacionais de "Alternativa Zero" e, em geral, da tecnologia portuguesa. É interessante lembrar que o projecto inicialmente proposto por Ana Hatherly (e que vem aproximadamente descrito no catálogo de "AZ") se aproximava operacional e tecnologicamente de um outro proposto por Michael Asher, em 1943, ao Los Angeles County Museum, dentro do programa A & T (Art & Technology) – e que se verificou ser impossível de realizar. Estes factos eram então desconhecidos de Ana, dos responsáveis por "Alternativa Zero" e dos engenheiros electrotécnicos consultados e que todos concluímos pela impossibilidade de obter uma "light floating in space and having the quality of being happened upon or elusive". Esta impossibilidade surgia-nos eminentemente portuguesa e a solução dos cartazes brancos e dilacerados com fundo preto e iluminação intermitente foi uma resposta artesanal e – digo eu – imediatamente política, as ruas de Lisboa: "é a infinidade do processo da significância cujo funcionamento é apresentado pelo inconsciente e cuja realização processual é dada pela linguagem poética". Os "cartazes" tiveram que ser refeitos várias vezes porque a pequena célula resultou numa proposta de participação, nunca no sentido cinético e abstracto. Mas no sentido da performance, isto é, apontando à "infinidade do processo da significância". As pessoas rasgavam as paredes da sua própria cidade, casa ou "ventre materno" – como declarou um dos mais frenéticos rasgadores.
A passagem da célula de "Alternativa Zero" à Rotura da Galeria Quadrum (à rotura do quadro) foi um acto cultural político consciente – o que é paradigmático de Ana Hatherly: "recusa de uma concepção de arte que permite que ela se transforme num comércio de objectos" e clamor por um novo conceito em que a arte "seja também a participação no real, no quotidiano de todos".
Ser político
Ana Hatherly: arte política. Principalmente porque resulta de um trabalho sobre a escrita, tenha esse trabalho como ponto de partida os caracteres arcaicos chineses, os cartazes rasgados de Lisboa ou... os acontecimentos políticos das ruas das cidades portuguesas como num seu filme Revolução (1975). E a escrita é sempre um acto político: a consciência da palavra perdida, a palavra prometida. (Falo de amor, não falo de outra coisa. Aquela consciência – memória, é erótica. A palavra prometida é a que há tanto tempo espero do amigo, da amiga. Palavra ou carícia. para se consumir precisa de casa e de cidade: de abrigo, de concha, de barco. Numa palavra esta esperança erótica é política. Eu desejo essa palavra, essa carícia. Desejo e revolução confundem-se: a cidade há-de existir com suas ruas amáveis, seus recessos de paz, suas sombras sussurrantes. Lá, enfim, faremos amor. Entretanto escrevo-te amor a revolução).
Muita gente confunde político, politização, com a consciência da tomada de partido – certamente também necessária. Mas é confundir tudo. Porque a decisão pelo partido, sendo a decisão corajosa pela palavra (de ordem) é o sacrifício da dor ou seja a ilusão da realidade contraditória a que nos referimos palavra perdida/prometida: a palavra da desordem. Tomar partido é já do domínio da acção. Da alegria – que é a coisa mais séria da vida bem entendida. Mas há pessoas que têm uma consciência lúcida e ainda não (conseguiram) tomar partido – o que deve ser a coisa mais séria da morte. E há ainda a ingenuidade. (Mesmo os "ingénuos voluntários", como diria Almada, participam de uma ingenuidade que se dilacera constantemente ... no político. Na escrita).
O grito (a acção política) e a escrita, vigários da palavra, situam-se assim no pólo da ordem e da desordem, da vida e da morte. Ser político, participa de ambos. Quem dera não o ser! A paz não é uma oferta, nem uma construção, é uma ausência. Duchamp e Cage podiam não ser directamente políticos: Maiakovski não podia (mesmo que por absurdo o quisesse) sequer deixar de tomar partido. Neste caso extremo e por um momento, a des-ordem do poeta e a das ruas con-fundiam-se. Mais tarde, já o sabemos, naufragaria o "barco do amor"... A escolha que nos resta também não é por aí além... mas de qualquer maneira, como engrandecer o desejo sem aumentar a consciência? Não é o consumo: o Tudo que vale a pena, é a "alma não pequena" o desejo cada vez maior.
Entre a ilusão tecnológica e o reconhecimento da servidão artesanal (das limitações, por exemplo, do filme reduzido) oscila a consciência e o desejo dos artistas (operadores estéticos, poetas) portugueses; e não entre tradições perdidas e imitações de vanguardismo internacionais. Isso é da mediocridade dos que os comentam (com o nome ou a função de críticos). Mas aquela oscilação corresponde à instauração de uma escrita – e naturalmente de uma linguagem de um pensamento. Não são as semelhanças da escrita que deviam preocupar os estudiosos (se os houvesse), mas as diferenças que nessa escrita surgem. Originais, necessárias e até políticas. As roturas de Ana Hatherly, por exemplo, vibradas nas superfícies lisas da Quadrum só superficialmente poderiam lembrar as lacerações de telas operadas uns dez anos antes por Fontana. Aquelas "roturas" (Ana provavelmente até ignorava a obra do grande pioneiro italiano, o que de resto é secundário) têm directamente que ver com uma experiência directa, que vem da "Alternativa Zero" e das ruas de Lisboa; que vem dos happenings colectivos realizados nos anos 60; que vem da meditação e do trabalho consciente, teórico e prático, sobre a escrita. Mas estudar as diferenças é muito mais difícil do que simplesmente averbar semelhanças ou fantasmas de semelhanças. E os arvorados a críticos (que regra geral são pintores falhados, ou falhados em qualquer coisa) julgam ainda que estas coisas concretamente se resolvem com o teclado da máquina, se é que ainda não o fazem (ou julgam fazer) com meia dúzia de penadas. É assim que neste país de ignominioso silêncio se vê manifestarem-se os medíocres (ou pedantemente calarem-se) sobre a gigantesca resistência de operadores como Ana Hatherly, Alberto Carneiro, Ana Vieira ou Helena Almeida, para citar ao acaso, com a mesma incongruência e convicção que o barbeiro das Pupilas tratava de cirurgia. Quando nos lembramos que estes críticos são também professores. compreende-se o resto.
Ser político, no caso da Ana, é coisa que obriga a mudar de parágrafo. É uma diferença.
Alternativa Zero
Tenho-me referido frequentemente à exposição "Alternativa Zero" a propósito da Ana Hatherly. As razões são óbvias, e o pudor – que é a coisa mais bonita que há no erotismo – eu reservo-o para outras paisagens. Mas ocorre-me um paralelo. Quase todas as referências "Alternativa Zero", mesmo as mais inteligentes (se exceptuarmos o ensaio de José Luís Porfírio em Brotéria que ninguém leu) usaram e abusaram do comentário às palavras alternativa e zero, esquecendo-se por vezes de fazer um estudo concreto da exposição (é curioso observar que os jovens de 13/14 ao escreverem sobre A.Z. porventura por incitamento escolar, fizeram exactamente o contrário). As palavras, de facto, foram escolhidas muito criteriosa e laboriosamente. Escolheu-se por exemplo entre "Alternativa Zero" e "Polémica Zero". Adiante. Só importa sublinhar agora, porque interessa para o caso de Ana Hatherly e dos artistas portugueses em geral, uma interpretação daquelas palavras que mal foi sublinhada até agora: é que, pelo menos para Portugal, a alternativa é zero. Não se teria proposto nenhuma alternativa. (Pessoalmente até sou contra as soluções alternativas). Mas sim um diálogo sobre o zero a que temos que chegar e que temos que assumir, para sermos alguma coisa.
Que as dilacerações da Ana, as telas ou papéis rasgados ou paredes ready-made, brutas, e brutalmente reais que ela projecta arrancar sejam ou venham a ser parecidas com algo que já se fez lá fora, a quem é que isto interessa? As aparências são ilusórias, e de qualquer maneira é de uma redução a zero das nossas mentiras que se trata. Um filósofo qualquer da antiguidade disse que Deus para criar o mundo tinha sido obrigado a mentir a si próprio. Pois é. Nós também, se queremos criar o nosso mundo. Merecer o Zero. Assumir a responsabilidade da desordem.