Vida Mundial n.° 1832
24 de Outubro de 1974
[Excerto]
Após o 25 de Abril houve uma grande inquietação associativa no meio dos artistas plásticos. Apesar da sua genérica positividade, havia algo de inquietante nesta movimentação: o seu oportunismo. Porque não se verificara antes? Porque não se reuniram antes os artistas plásticos em amplas associações de classe e deixaram que tudo corresse pelas "malhas" que o império tecia? fácil assacar agora culpas ao sistema que nos regia. O sistema não impediu que se associassem os escritores, por exemplo; que os cineastas, mais controversamente, tenham em várias circunstâncias tentado a existência de grupos de trabalho e cooperativas. E claro, muitas vezes, essas associações foram objectivo de perseguição e pressões diversas. Por isso mesmo a sua existência, mais ou menos eficiente, mais ou menos efémera, era já um factor de luta e resistência. E os artistas plásticos? Os artistas plásticos cruzavam os braços e deixavam correr o fio, quer dizer: o mercado. A tal ponto isto foi assim, que, quando de certas manifestações oficiais ou semi-oficiais se verificou a inclusão das respectivas obras, isso não levantou o mais pequeno protesto. (O que serviu de pretexto para a manobra e manipulação de outros sectores, diga-se de passagem. Lá chegaremos um dia.) Para não ficar no vago, posso citar um exemplo. A oficialíssima exposição "Pintura Portuguesa de Hoje – Abstractos e Figurativos", de Julho de 1973, manobra de propaganda "para Espanha ver", inaugurada em Barcelona com os Moreiras Baptistas de cá e de lá; quando em devida altura e lugar protestámos, pelo facto de organismos respeitáveis como a A.I.C.A. e a S.N.B.A. terem prestado a respectiva caução; e ainda porque os artistas tinham sido incluídos sem prévia consulta... foi-me argumentado entre outras coisas que nenhum trabalhador estético protestara, a não ser os não seleccionados, claro. Que esses, sim, protestaram, e desta vez com "as boas razões". (Naturalmente estes últimos tinham colaborado largamente no douramento de outros prestígios igual ou piormente discutíveis.) Ora isto não aconteceu porque de repente os artistas plásticos se tenham virado para o lado do diabo. Individualmente, eles continuavam a ser pessoas honradas, sensíveis e até – na maior parte dos artistas melhores – antifascistas. Lá no âmago é certo... contam-se pelos dedos aqueles que se interessaram a sério pelos negócios políticos do seu país. Mas isto tem razões precisas, que se devem analisar; algumas históricas. Efectivamente nem sempre foi assim e até acontece que o respectivo esquema histórico é muito importante para uma compreensão actual. O respectivo estudo, que apenas apontaremos, demonstrará que no conjunto as artes plásticas em Portugal (incluindo nisto os efeitos da evolução favorável do mercado) até constituíram um factor global de independência do factor político, e logo de resistência. Essa demonstração completar-se-á quando se provar o alto nível daquilo a que chamarei o seu lado artesanal – o que não é de maneira nenhuma uma classificação pejorativa, ó Alain! – e, portanto, a sua alta qualidade estética relativa.
Efectivamente, nem sempre foi assim. Depois da geração contemporânea à "política do espírito" de António Ferro, houve um período de intensa actividade associativa e independência manifesta. É o período das "exposições gerais", que viu entre outras correntes surgir os movimentos neo-realista e surrealista, e os primeiros abstractos. Foi, meço bem as palavras, num período heróico. Um grande fresco foi coberto por "ordens superiores", houve quadros apreendidos e outros escondidos debaixo da cama; as exposições surrealistas e dos primeiros abstractos ainda causavam escândalo, os alunos de Belas-Artes ainda editavam boletins de alto teor polémico-estético. O boletim Ver por exemplo, folheia-se hoje com ternura e emoção. É já o passado... Também por esta altura se esboçaram as primeiras galerias. Em parte devidas a críticos e artistas plásticos e não a marchands que vieram depois – ao contrário do que para aí já se vai afirmando levianamente. A Galeria de Maio, do José Augusto França – que está na moda agora atacar, mas que teve um papel decisivo em toda esta história –, e até a Domingos Alvarez, no Porto, que começou por ser uma Academia de Desenho, devida ao entusiasmo do pintor Jaime Isidoro.
(…)
O que ficou dito tinha de ser dito – e não ficaremos por aqui. Tomar consciência é a primeira condição para uma vida nova. Efectivamente e não apenas nas palavras. Anti-crítica ou anti-fascismo? Acontece que raras vezes os artistas precisaram tanto de uma militância crítica, mesmo no que respeita a uma boa clarificação das coisas respeitantes ao mercado. Isto por muitas razões. A menor das quais é a nova irresponsabilidade que à sombra das novas condições fatalmente vai fervilhar. (…)