[Excerto]
Uma sala completamente às escuras, móveis vulgares ocupados por um público interessado. Uma dezena de altifalantes distribuídos por toda a sala, aparelhos electrónicos amontoados sobre uma mesa demasiado pequena, uma mistura de diversos instrumentos (alguns ortodoxos, mas a maior parte não ortodoxos) sobre um pódio informal e três grandes ecrãs suspensos constituíram a decoração e o ambiente deste acontecimento único na história das pesquisas artísticas de vanguarda no domínio mixed-media. O festival do imprevisto, da verdadeira experimentação, dos contactos sempre frutuosos entre pesquisadores da nova cultura de todas as nacionalidades, tal era o objectivo essencial a que se tinham proposto os organizadores (isto é, "LOGOS"–grupo internacional de música de vanguarda e mixed-media ).
O festival, que durou três dias, foi aberto por Ben Vautier, frequentador destas manifestações através do movimento FLUXUS. Em seguida o próprio grupo "LOGOS" apresentou uma obra de mixed-media intitulada QUE FAZER? (Lenine).
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A primeira tarde do festival acabava com uma criação portuguesa: Ernesto de Sousa e Jorge Peixinho numa produção intitulada Luís Vaz 73. Esta obra utiliza como material de base os Lusíadas do poeta português Luís Vaz de Camões. Uma decomposição/recomposição segundo o esquema de colagem transforma o poema da renascença numa obra contemporânea de mixed-media (a saber: música electrónica + multi-projecções) :
A música de Jorge Peixinho apoia-se sobre uma série de estruturas elaboradas de antemão que ele põe em relação com os momentos típicos do poema (não se trata aqui de modo nenhum de folclorismo mas de uma escolha em função da dialéctica histórica da cultura descrita por Camões). A ideologia músico-política que se poderia associar a este processo é, num sentido puramente formal, mais ou menos análoga à dos ingleses Cornelius Cardew e John Tilbury: apenas a oposição de teses (musicais) contraditórias pode mostrar e ensinar alguma coisa de verdadeiro ao espectador. É a confrontação permanente do espectador posto em causa: ele deve escolher, fazer uma escolha ideológica e por consequência, política. Se não estivéssemos certos do progressismo radical da estética de Peixinho, poder-se-ia pôr fortemente em dúvida o impacto político e, sobretudo, a comunicabilidade de tais processos.
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Dever-se-ia, portanto, reduzir a mensagem extra-musical a um apelo ao público, seguindo o título da obra, para que ele se interesse pelos momentos progressistas da história da sua própria cultura a fim de lhe ensinar também a escolher na actualidade as correntes progressistas existentes. Esta análise poderia demonstrar o fundamento marxista do pensamento estético de Peixinho. A maior parte do que foi dito a propósito da música electrónica de Peixinho é aplicável à fotografia de Ernesto Sousa. Mas o material de base de Ernesto Sousa é ainda mais claro. É antes de mais o poema, que não está presente na obra total, depois a música de Peixinho com a qual as relações diapositivos/música são evidenciadas na obra pois são perceptíveis no próprio momento da execução. Mas independentemente, as séries de diapositivos também formam, elas próprias, estruturas inteligíveis, possuem uma estrutura própria, uma coerência interna, pois que embora presentes na obra, elas funcionam ao mesmo tempo como autocriação de Ernesto de Sousa (com efeito, certas séries de diapositivos são tiradas de outros projectos para realizações anteriores). O conteúdo ideológico do médium/diapositivo (e isto é devido às possibilidades particulares dos meios de comunicação visuais) é mais evidente que o conteúdo ideológico da música: perspectivas das ruas de Lisboa com cartazes políticos colados um pouco por toda a parte, testemunham a escolha do autor.
É necessário agora acrescentar algumas considerações a propósito da totalidade mixed-media de Luís Vaz 73. Esta totalidade funciona como um ambiente: o público faz parte do espectáculo, rodeado como está de imagens visuais e de música (distribuída em quadrifonia), o projecto é a cada instante de uma complexidade tal que o espectador é obrigado a participar, a escolher os seus "pontos de vista", a reconstituir para ele mesmo as inter-relações no perceptível, etc... e é justamente o que torna Luís Vaz 73 tão atraente e interessante. Não se pode senão aconselhar aos autores a continuar os seus esforços, as suas pesquisas em mixed-media e a sua frutuosa colaboração. Portugal, depois de um longo silêncio cultural, tem necessidade de criadores que se comprometam a estabelecer uma cultura verdadeiramente progressista, evitando as armadilhas de uma pseudo cultura de consumo e alienação ou de uma pseudo cultura retrospectiva, implantada nos "valores eternos".
Com a "Companhia d'Ópera Bufa Portuguesa" que deu um espectáculo no dia seguinte, podemos afirmar que a contribuição portuguesa neste festival constituiu uma verdadeira revelação, da qual esperamos com interesse os progressos futuros.